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Minha vida de abobrinha

04/07/22

courgette
Contém spoiler!!!
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Sandor Ferenczi opera uma mudança radical sobre como vemos a família. Longe de estar protegida por algum instinto natural de proteção, Ferenczi mostrou que não há garantia para a hospitalidade humana.
O filme “Minha vida de abobrinha”, de Claude Barras (2016), narra a história de Simon, apelidado pela mãe de Courgette (Abobrinha). Numa cena que parece se repetir cotidianamente, Courgette brinca sozinho no quarto juntando as latinhas de cerveja da mãe alcoólatra. Ao deixar cair as latas, a mãe o ameaça e, sem querer, ao fechar o alçapão do sótão que também era seu quarto, Courgette derruba sua mãe alcoolizada na escada, o que acaba por matá-la.
Depois do acidente, Courgette é levado para um orfanato e ali conhecemos a história de várias crianças, todas permeadas pela violência e pelo abandono. (A única exceção, me parece, é a mãe de uma menininha que foi extraditada pelo governo francês para um país africano não mencionado).
Ferenczi escreve alguns textos que merecem ser lidos conjuntamente: “O bebê sábio”, “Confusão de línguas”, “A criança mal-acolhida e sua pulsão de morte” e “A adaptação da família à criança”. A tese geral do autor é que não há garantia amorosa para se receber uma criança.
Numa cena emblemática do filme, as crianças perguntam para uma das ajudantes do orfanato que acabara de ter um bebê: você vai abandonar seu bebê? E ela responde que não… e as crianças órfãs insistem: nem se ele chorar sem parar? nem se ele fizer muito cocô? e assim por diante…
O que é espantoso para essas crianças parece ser o fato de alguém continuar amando um bebê apesar do mal-estar que ele gera. Winnicott é certamente um leitor de Ferenczi e nos falará do importante trabalho que um adulto faz ao suportar ser destruído pelo bebê sem retaliação. Aos poucos, a criança aprende que pode continuar destruindo o objeto na fantasia e que não precisa continuar a atacá-lo para testar seus limites, fronteiras e afetos.
Ferenczi insiste que a adaptação parte da família prioritariamente e não da criança. Essa tese é uma ruptura muito importante com o inatismo presente nas considerações de Freud sobre o complexo de Édipo. O Édipo normativo, inato, que era uma garantia do amor (heterossexual, na maior parte das descrições de Freud) entre adultos(as) e crianças.
Abobrinha, conversando com Camille, outra criança do orfanato, diz que sonha de vez em quando que é adulto e que está com a mãe, bebendo como e com ela. Ele relata, com alívio, que sabe que isso é um sonho e que isso não irá acontecer. Abobrinha, aliás, está feliz e apaixonado por Camille com quem será adotado posteriormente.
O sonho de Abobrinha é a cicatriz de sua situação originária e traumática. A repetição interna talvez seja uma maneira de fazer as pazes com essa mãe má e indiferente. Ferenczi será o primeiro autor a sustentar a hipótese da identificação com o agressor como um recurso para a criança em desespero diante do adulto que não a acolhe.
A adoção de Abobrinha e Camille pelo policial Raymond é um final feliz que, infelizmente, não acontece com frequência com as crianças mais velhas em orfanatos. Raymond, no entanto, é movido pelo desejo de acolher, de recomeçar… afinal, ele tem um filho que o abandonou (estaria morto?), segundo sua narrativa.
As teses de Ferenczi nos ajudam, portanto, a resituar a noção de hospitalidade. Não podemos esquecer que Édipo era um filho adotivo cuja história lhe foi desmentida e sistematicamente recusada. Édipo foi um bebê sábio, cuja ruína foi ter que resolver sozinho questões que exigiam ajuda de alguém. A família não é garantida pela biologia, mas pelo desejo de acolhimento, pelo gesto da hospitalidade.
Enfim, um filme singelo e otimista sobre a adoção que parece ter compreendido perfeitamente o universo das crianças. Recomendo vivamente.